Quando seu nome nem era tratado publicamente como uma possibilidade de candidato à presidência da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB) era visto por caciques de partidos de centro como alguém com o perfil ideal para exercer o cargo num cenário político tão conflagrado quanto o atual. Jeitoso, equilibrado e de uma rara paciência, como definem seus aliados, o deputado sempre preferiu trocar os holofotes pelas conversas a portas fechadas. Na miúda, ele arregimentou apoios da direita à esquerda, firmou acordos com o presidente Lula e com o ex-presidente Jair Bolsonaro e, de azarão, tornou-se um dos homens mais importantes da República após conquistar o voto de 86% dos deputados. Os pactos firmados para garantir a sua eleição nunca foram revelados. Jamais se soube, por exemplo, o que Motta prometeu em múltiplas mesas de negociação sobre o projeto que concede anistia aos condenados pelos ataques de 8 de janeiro de 2023, quando os prédios do Congresso, do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Palácio do Planalto foram invadidos e depredados por apoiadores de Bolsonaro que, segundo a Polícia Federal, queriam acelerar um golpe de Estado e manter o capitão no poder.
Esse enigma, que domina a pauta política no início de 2025, ainda não foi desvendado. Petistas garantem ter obtido de Motta o compromisso de que o salvo-conduto aos vândalos não encontrará guarida em sua gestão. Os bolsonaristas, por sua vez, demonstram otimismo ao dizer que o presidente da Câmara lhes afiançou não haver vetos a nenhum tema. Já ministros do STF, que travam uma batalha contra o perdão aos golpistas, afirmam manter contato diário com Motta, de quem teriam ouvido a promessa de que nada acontecerá sem ser combinado previamente com o tribunal.

As partes interessadas, como se vê, têm versões no mínimo contraditórias entre si. Alguém está enganado e será contrariado. Resta saber quando e em que grau. Pressionado, Motta terá de dar algum indício de como pretende desatar esse nó nos próximos dias — não porque ele tenha pressa, mas porque se viu obrigado a começar a arbitrar a disputa. Na última segunda-feira, 14, a oposição alcançou a sua primeira vitória ao protocolar um requerimento com pedido de urgência ao projeto de anistia, assinado por 262 deputados, cinco a mais do que o mínimo necessário. Se aprovado, esse requerimento fará com que o projeto seja analisado direto no plenário, sem passar pelas comissões.
Cabe ao presidente da Câmara decidir quando vai pautar o dito requerimento. A oposição quer pressa, sob o argumento de que a maioria deixou claro que chancela a iniciativa. “Nós demos o conforto que ele precisava. Ele pode virar para o STF e falar: ‘a Casa construiu maioria, não tenho alternativa’”, diz o deputado Sóstenes Cavalcante, líder do PL. Já o governo trabalha para interditar a tramitação, lembrando que há mais de 1 000 pedidos de urgência à espera de análise e que a cartada bolsonarista tem de ir para o final da fila. Procurado por VEJA, Motta não quis comentar o caso. O deputado esticou o feriado da Páscoa longe do Congresso e precisa ainda tocar pautas relevantes, urgentes e de interesse do país, que estão à espera de análise. Entre elas, a revisão dos supersalários e o desafio de encontrar uma compensação para a isenção de imposto de renda de quem ganha até 5 000 reais por mês.

Em uma publicação feita nas redes sociais um dia após a apresentação do requerimento pró-anistia, Motta voltou a dizer que o tema será submetido à análise dos líderes partidários. Foi mais uma de suas inúmeras manifestações protocolares. “Em uma democracia, ninguém tem o direito de decidir nada sozinho. É preciso também ter responsabilidade com o cargo que ocupamos, pensando no que cada pauta significa para as instituições e para toda a população brasileira”, afirmou, equilibrando-se em muitas palavras.
O número mínimo de assinaturas de apoio ao requerimento de urgência foi alcançado após um empenho direto de Jair Bolsonaro. Réu no STF e investigado como o líder máximo de uma tropa que tentou dar um golpe no país, o ex-presidente visitou o Congresso diversas vezes, conversou diretamente com os caciques de partidos e encabeçou manifestações de rua para mobilizar aliados e pressionar os parlamentares a aderir à anistia. Desde que deixou a Presidência, foram cinco atos no Rio de Janeiro e em São Paulo. No último deles, no início do mês, o pastor Silas Malafaia chegou a bradar que Motta estava “envergonhando o honrado povo da Paraíba”. Correligionário do presidente da Câmara, o governador de São Paulo, Tarcísio Gomes de Freitas, também disparou telefonemas pedindo apoio à urgência. Ele conseguiu amealhar cinco preciosos votos a favor do requerimento pró-anistia.

Acossado pelo STF, Bolsonaro havia programado um giro pelo Nordeste que começaria no Rio Grande do Norte na última sexta-feira, 11. Ao chegar a uma cidade a 100 quilômetros de Natal, porém, ele passou mal e teve de ser transferido de helicóptero às pressas. O ex-presidente foi diagnosticado com uma obstrução intestinal e passou por cirurgia que durou doze horas, uma das mais complexas desde que levou uma facada durante a campanha presidencial de 2018. Ainda não há previsão de quando ele deixará o hospital, mas é certo que o contratempo médico não deterá a cruzada pela anistia. Antes tratada como uma utopia, a conquista das assinaturas favoráveis à urgência do projeto foi recebida como uma senhora derrota do governo Lula. Quatro dias antes de os aliados do capitão atingirem seu objetivo, a ministra Gleisi Hoffmann, responsável pela articulação política, afirmou ter confiança na palavra de Hugo Motta de que o tema não irá a voto, mas surpreendeu ao dizer que uma redução da pena a alguns dos manifestantes do 8 de Janeiro é “plenamente defensável do ponto de vista de muitos parlamentares”.
No dia seguinte, Gleisi retocou a declaração e disse que eventuais revisões das penas caberiam exclusivamente ao STF. O posicionamento da ministra gerou irritação nos bastidores da Corte, já que os próprios magistrados entraram em campo para, sem sucesso, tentar demover congressistas a endossarem a urgência da pauta. Dos 262 apoios, mais da metade veio de partidos do Centrão que têm cargos no governo. Agora, o Planalto promete fazer um pente-fino nas nomeações das legendas. Quem tiver cargos terá de lutar para frear o avanço do texto ou perderá seu rincão na máquina pública. O PP, que controla o Ministério do Esporte e a Caixa, foi o que mais entregou votos proporcionalmente — mais de 70% da bancada chancelou o pedido. Numa demonstração do tamanho da preocupação com as possíveis retaliações do governo, enquanto a Câmara confirmava as assinaturas pela urgência da anistia, o ministro André Fufuca, do PP, inaugurava ao lado do correligionário Arthur Lira um ginásio esportivo em Coruripe, no litoral de Alagoas.

Da esquerda, o deputado Paulo Foletto (PSB-ES) foi o único que chegou a dar sua rubrica para acelerar a votação da anistia. Depois, recuou. A VEJA, o parlamentar negou ter sofrido pressão do governo e disse que mudou de posição porque acreditou que o texto em discussão se tratava apenas de uma redução da pena para a “massa de manobra” do 8 de Janeiro. “Teve gente que até falou assim: ‘ô, que vontade de assinar também’. Eu mesmo tenho muitos eleitores que não entendem a profundidade da questão e pedem para assinar”, afirmou o deputado. “Eu sou favorável a uma dosimetria. Dá uma pena alternativa, manda limpar escola. Mas não dá para botar dezessete anos de prisão nesse povo que foi levado pela paixão”, acrescentou.
A confusão do deputado, se de fato existiu, não é de todo despropositada. Em meio a todo esse imbróglio, ainda não se sabe qual o conteúdo do projeto que pode aliviar a situação dos condenados pelos ataques na Praça dos Três Poderes. O texto principal foi apresentado em novembro de 2022, antes mesmo dos atos antidemocráticos, e tem como objetivo perdoar quaisquer manifestantes, caminhoneiros e empresários que participaram de protestos após o segundo turno das eleições.

Na Câmara, outros sete projetos que tratam da anistia foram juntados ao original, com adaptações especificamente para o 8 de Janeiro e visando minimizar os atos a uma depredação do patrimônio, restando uma pena mínima. Bolsonaro e seus articuladores já deixaram claro que querem derrubar todas as condenações aplicadas por tentativa de golpe de Estado. Ou seja: lutam por uma anistia ampla, geral e irrestrita. O esforço não é à toa. Embora afirmem que a medida não alcançaria o ex-presidente, isso pode acontecer, dependendo do teor do texto final.
Com o ministro Alexandre de Moraes à frente, e a ajuda providencial de Gilmar Mendes, o STF tem atuado junto a líderes partidários em busca de uma solução para evitar que uma anistia a Bolsonaro ganhe corpo no futuro. Integrantes do tribunal já deixaram claro que o perdão, se aprovado pelo Legislativo, será considerado inconstitucional. Ou seja: de um jeito ou de outro, não prosperará. A saída encontrada pelos magistrados para baixar a temperatura é outra: garantir o abatimento de pena a certos golpistas, especialmente àqueles que consideram massa de manobra.
Em decisões recentes, Moraes trocou penas privativas de liberdade por prisão domiciliar, por exemplo. Foi o que o ministro fez na última terça-feira, 16, com o pastor Jorge Luiz dos Santos. Condenado a dezesseis anos e seis meses de prisão e com problemas cardíacos graves, ele foi autorizado a deixar o presídio da Papuda, em Brasília, mediante o cumprimento de uma série de restrições, como o uso de tornozeleira eletrônica. Antes, Moraes já havia autorizado a trocar o regime fechado pela prisão domiciliar outros processados, como a cabeleireira Débora Rodrigues dos Santos, que pichou a estátua da Justiça com um batom e se tornou símbolo de campanha bolsonarista contra supostos abusos nas condenações. Segundo integrantes do STF, esse tipo de solução mantém o discurso de que o Judiciário tratará os golpistas com rédeas curtas, mas também ajuda a esvaziar a ladainha do ex-presidente de que cidadãos comuns, idosos e mães de família estariam sendo perseguidos pelo Judiciário. O STF também pretende utilizar os próximos julgamentos para, nas palavras de um ministro, “separar o joio do trigo” e demonstrar que não há espaço para apaziguamento a mentores e executores da tentativa de golpe de Estado.

Na próxima semana, a Corte deve concluir a análise do caso de Débora e declarar que a cabeleireira não é tão inocente como pintam os bolsonaristas, mas, pode, sim, cumprir o restante da pena longe da cadeia. Ao mesmo tempo, o Supremo pretende direcionar os holofotes para réus com atuação direta no plano de demolição da democracia, como o general Mario Fernandes e o ex-diretor-geral da Polícia Rodoviária Federal Silvinei Vasques, que deverão se tornar réus por golpe de Estado e tentativa de abolição do Estado democrático de direito. Sobre o general, recai a acusação de ser o autor do principal capítulo da trama golpista: o assassinato do presidente Lula, do vice Geraldo Alckmin e do ministro Moraes. Já Silvinei é investigado por supostamente ter tentado impedir eleitores de bolsões tidos como petistas de votar no segundo turno. Enquanto lida com a pressão e faz ajustes gradativos na régua usada para punir a “massa de manobra” do 8 de Janeiro, o Supremo acompanha com lupa os movimentos de Hugo Motta. “Mantemos a confiança no presidente da Câmara e acreditamos que ele não vai fazer nada contra o Supremo nem a despeito do Supremo”, disse a VEJA, sob reserva, um integrante do tribunal.
Esse mesmo ministro reforçou que, se a anistia avançar, será considerada inconstitucional. Portanto, não valeria a Motta comprar essa briga. Argumento parecido é usado por integrantes do governo Lula, que lembram o deputado de que o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, já afirmou que o projeto não entrará na pauta da Casa. Até aqui, Motta, o equilibrista, conseguiu manter o diálogo com todos os interessados, sem deixar claro o que fará. Mais cedo ou mais tarde, no entanto, ele contrariará interesses, naquela que será sua estreia, de fato, na poderosa e desgastante cadeira de presidente da Câmara.
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